Acórdão: Apelação Cível n. 2007.032025-7, da Chapecó.
Relator: Des. Marcus Tulio Sartorato.
Data da decisão: 02.10.2007.
Publicação: DJSC Eletrônico n. 321, edição de 30.10.2007, p. 236.
EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. AUTORA QUE ALEGA TER SOFRIDO ABALO MORAL E PATRIMONIAL POR FORÇA DE QUEIXAS-CRIMES PROMOVIDAS CONTRA SI PELA RÉ, FUNDADAS EM PEQUENOS DESENTENDIMENTOS OCORRIDOS ENTRE AS PARTES NA RELAÇÃO DE VIZINHANÇA. INOCORRÊNCIA. MEROS DISSABORES INCAPAZES DE CONFIGURAR DANO À MORAL. DIREITO DE LIVRE ACESSO À JUSTIÇA GARANTIDO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DEVER DE INDENIZAR INEXISTENTE. REQUISITOS DOS ARTS. 186 E 927 DO CÓDIGO CIVIL NÃO CONFIGURADOS. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
1. Os incômodos e contrariedades enfrentados cotidianamente não devem ser considerados, por si sós, fontes geradoras de dano moral, precipuamente aquelas consubstanciadas em singelos aborrecimentos desprovidos de qualquer potencialidade lesiva, como as advindas do relacionamento de vizinhança.
2. Sem comprovação dos requisitos insculpidos no art. 159 do Código Civil de 1916 (correspondente ao art. 186 do Código Civil de 2002), não há que se cogitar responsabilidade civil subjetiva por ato ilícito.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2007.032025-7, da comarca de Chapecó (3ª Vara Cível), em que é apelante Salete Maria Piccoli, e apelada Marilene Rodrigues Salvador:
ACORDAM, em Terceira Câmara de Direito Civil, por votação unânime, negar provimento ao recurso. Custas na forma da lei.
RELATÓRIO
Adota-se o relatório da sentença recorrida que é visualizado às fls. 159/160, por revelar com transparência o que existe nestes autos, e a ele acrescenta-se que o MM. Juiz de Direito julgou improcedente o pedido inicial, condenando a autora ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, os quais tiveram sua exigibilidade suspensa ante o deferimento do benefício da justiça gratuita.
Irresignada com o veredicto, a vencida interpôs recurso de apelação (fls. 170/176), reiterando a ocorrência de abalo moral e prejuízo material indenizável. Pediu a reforma total da sentença e, conseqüentemente, a procedência de seu recurso.
Contra-razões às fls. 183/186, pela manutenção do decisum.
VOTO
1. A Carta Magna em seu art. 5º, X, estabelece que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".
De igual sorte, está previsto no art. 186 do Código Civil de 2002, que: "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".
E a respeito da obrigação de indenizar, não se pode perder de vista o que preceitua o art. 927, caput, também da legislação civilista: "aquele que, por ato ilícito (art. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".
A responsabilidade civil subjetiva pressupõe, assim, a demonstração da culpa ou dolo do agente, do nexo de causalidade entre o ato ilícito e o dano, e o prejuízo "que viole qualquer valor inerente à pessoa humana ou atinja coisa do mundo externo que seja juridicamente tutelada" (Fernando Noronha, Direito das obrigações, Saraiva, 2003, 1ª ed., v. 1, p. 474).
Nas palavras de Maria Helena Diniz, "para que se configure o ato ilícito, será imprescindível que haja: a) fato lesivo voluntário, causado pelo agente, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência; b) ocorrência de um dano patrimonial ou moral [...]; e c) nexo de causalidade entre o dano e o comportamento do agente" (Código civil anotado, Saraiva, 2003, 9ª ed., p. 180). Para Serpa Lopes, responsabilidade "significa a obrigação de reparar um prejuízo, seja por decorrer de uma culpa ou de uma circunstância legal que a justifique, como a culpa presumida, ou por uma circunstância meramente objetiva" (Curso de direito civil: fontes acontratuais das obrigações: responsabilidade civil, Freitas Bastos, 2001, 5ª ed., v. 5, p. 160).
No que toca a violação da honra, colhe-se da obra de Rui Stoco:
"O direito à honra, como sabem, se traduz juridicamente em larga série de expressões compreendidas como princípio da dignidade humana: o bom nome, a fama, o prestígio, a reputação, a estima, o decoro, a consideração, o respeito.
[...] a honra da pessoa é um bem resguardado pela Lei Maior e pela legislação infraconstitucional. Se ofendido, o gravame haverá de ser reparado, segundo os reflexos nocivos ocorridos no mundo fático.
Deste modo, se atingido o patrimônio, a indenização terá caráter patrimonial. Se, contudo, o prejuízo for apenas moral, mas efetivo, esse será a natureza da indenização devida" (Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial. 2ª ed. São Paulo: RT. 1995, pp. 471-472).
Acerca do mesmo tema, prelecionam, ainda, Yussef Said Cahali e Silvio de Salvo Venosa, respectivamente:
"[...] tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes à sua personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está integrado, qualifica-se, em linha de princípio, como dano moral; não há como enumerá-los exaustivamente, evidenciando-se na dor, na angústia, no sofrimento, na tristeza pela ausência de um ente querido falecido; no desprestígio, na desconsideração social, no descrédito à reputação, na humilhação pública, no devassamento da privacidade; no desequilíbrio da normalidade psíquica, nos traumatismos emocionais, na depressão ou no desgaste psicológico, nas situações de constrangimento moral" (Dano Moral, Revista dos Tribunais, 2000, pp. 20-21).
"Somente haverá possibilidade de indenização se o ato ilícito ocasionar dano. O dano deve ser atual e certo; não são indenizáveis danos hipotéticos. Sem dano, patrimonial ou moral, não se corporifica a indenização. A materialização do dano ocorre com a definição do efetivo prejuízo suportado pela vítima" (Contratos em Espécie e Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 2001, v. 3, p.. 510).
No caso em exame, cinge-se a controvérsia em verificar se houve, efetivamente, ofensa à honra e dignidade da autora, ora apelante, que teria sido supostamente exposta a situação vexatória pela ré, a qual lhe ofertou queixa crime perante a Justiça Criminal Estadual, ocasionando-lhe vários prejuízos de ordem moral e patrimonial.
Em contrapartida, argumenta a ré, ora apelada, que apenas exerceu o seu direito de acesso à justiça, eis que vinha sofrendo, a bastante tempo, ameaças e agressões verbais por parte da autora
Compulsando os autos, verifica-se que, de fato, a ré promoveu duas queixas crimes contra a autora, decorrentes de fatos diversos, as quais foram extintas sem manifestação de mérito, uma porque decorrido o prazo decadencial (fl. 50) e outra porque despida de qualquer prova ou indício capaz de imputar a prática de delito contra a honra à autora (fls. 81/83).
Entretanto, o simples fato de a ré ter proposto queixa-crime contra a autora não pode ser caracterizado como uma conduta ilícita. É que a Constituição Federal garante o livre acesso à Justiça, para todos os seus cidadãos, ao manifestar em seu art. 5º, inc. XXXV, que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".
De mais a mais, encontra-se bastante claro nestes autos que autora são vizinhas e possuem constantes desentendimentos, mas nada que tenha gerado ampla e grave repercussão no ambiente social em que vivem. É, aliás, o que se colhe das provas testemunhais apresentadas em juízo:
"Eu conheço a Salete da loja onde ela trabalha, e tomei conhecimento, numa oportunidade em que eu estava lá, que ela tinha problemas com uma vizinha, pois tinha acontecido um fato a respeito de uma máquina que ia abrir uma valeta, e a Salete ficou muito nervosa, teve que ir para casa rápido, e tal problema teria sido causado pela vizinha" (Elisabete Aparecida Poppe, testemunha da autora, fl. 138). (sem grifo no original)
"Eu conheci a Marilene em 2001, e nós ficamos amigas por ocasião do trabalho. Eu me lembro que ela me falava que estava tendo problemas com a vizinha. Ela me falou que a vizinha a desaforava, incomodava com o carro, com o som, e a Marilene sempre me pedia que eu fizesse orações para ela, para que fosse solucionado o problema" (Milka Brancher, informante por parte da ré, fl. 136). Sem grifos no original.
"Eu fui inquilina da Marilene de 05/02/2003 a 14/08/2004 e numa certa oportunidade a Salete me falou que a Marilene seria uma pessoa preconceituosa, em razão de eu ser mãe solteira, e que eu teria problemas com ela. Mais tarde, com a convivência com a Marilene eu vi que ela tratava-se de pessoa de boa índole. Eu nunca vi elas baterem boca e nem intrigas de qualquer parte. O que ocorria é que em frente a casa da Salete havia bastante movimento de carros, barulho, som alto, queimadas de pneu e isto incomodava bastante [...]. Por ocasião de derrapagens de pneus em frente a casa da Salete, vinha brita para a calçada da Marilene" (Mari Lourdes Cavazzotto, informante, fl. 139).
Portanto, como se extrai dos depoimentos supracitados, tanto as queixas-crimes crimes ofertadas pela ré, como o pedido formulado na presente ação, encontram-se fundados em meros dissabores pessoais existentes entre as partes, comum no relacionamento de vizinhança, mas incapaz de gerar condenação por abalo à moral. Por oportuno, ressalta-se o seguinte excerto da sentença singular:
"Em verdade o que podemos observar de todo o processado, inclusive em decorrência da prova testemunhal coligida, é que autora e ré como vizinhas vivem em constantes desentendimentos. Tais desentendimentos, ao meu sentir, por si só, não podem ser trazidos às barras do judiciário e destes receberem o agasalho. Ora, os desentendimentos são mútuos e em decorrência dos mesmos não vislumbro qualquer dano vultoso capaz de gerar indenização
[...]
Nessa linha de princípio, só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente ao comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústias e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos' (Programa de responsabilidade civil, 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 97/98)" (fls. 162/164).
Nesse mesmo sentido, é o entendimento deste Tribunal:
“Os incômodos e contrariedades enfrentados cotidianamente não devem ser considerados, por si sós, fontes geradoras de dano moral, principalmente aquelas consubstanciadas em singelos aborrecimentos desprovidos de qualquer potencialidade lesiva” (AC n.º 2006.015349-5, deste relator).
“Não se indeniza o mero aborrecimento cotidiano e a simples sensação de desconforto, sob pena de banalização do instituto do dano moral” (AC n.º 2004.000350-1, Des. Luiz Carlos Freyesleben).
“Não é todo incômodo pessoal causado por terceiro que gera direito a indenização por dano moral. ‘A lesão leve, moderada, somente pode ser objeto de indenização por danos morais, se ficar demonstrado eventual constrangimento à vítima, ou vexame, ou que tenha causado humilhação. (...) Se a lesão é mínima, não repercutiu no âmago da vítima, de sorte a levar desassossego, não há dano moral’ (Antônio Jeová Santos)” (AC n.º 2003.025643-2, Des. Jaime Ramos).
“A indenização por dano moral quando referida por injúria ou difamação deve demonstrar a manifestação intencional de causa prejudicial à honra e à imagem em questão, configurando a necessidade de comprovação, o que não ocorrendo, descaracteriza o dever de indenizar” (AC n.º 2002.017698-8, Rel. Des. Sérgio Roberto Baasch Luz).
“O arbitramento de indenizações por meros aborrecimentos cotidianos se mostra despropositado, frente ao disposto no Código Civil. É sabido que qualquer cidadão se depara, diariamente, com situações que lhe trazem transtornos, na maioria, geradas por terceiros. Não é de se admitir como medida necessária para a justiça, fazer toda e qualquer pessoa que causar um simples incômodo a outrem, recompensar-lhe em dinheiro.
O dano moral ‘não decorre da natureza do direito, mas do efeito da lesão, do caráter da sua repercussão sobre o lesado. O dano moral deve ser compreendido em relação ao seu conteúdo, que não é o dinheiro nem coisa comercialmente reduzida a dinheiro, mas a dor, o espanto, a emoção, a vergonha, a injúria física ou moral, em geral uma dolorosa sensação experimentada pela pessoa, atribuída à palavra dor o mais largo significado’ (DIAS, Aguiar. Da Responsabilidade Civil, vol. II, pág. 226)” (AC n.º 2003.026426-4, Rel. Des. José Volpato de Souza).
Posto isto, não se pode imputar a ré a obrigação de indenizar a autora, eis que não se encontra configurado nestes autos qualquer conduta que tenha ocasionado dano à moral da apelante, senão um mero dissabor relacionado aos altos e baixos do cotidiano humano. Assim, à míngua de um dos pressupostos elencados no art. 186 do Código Civil, a saber, o dano, insubsistente responsabilização civil da ré pelo acontecimento descrito na exordial.
Acerca do tema, colhem-se os seguintes julgados desta Corte:
"Não há que se cogitar em responsabilidade civil por ato ilícito e reparação de danos sem comprovação dos requisitos esculpidos no art. 159 do Código Civil de 1916 (correspondente ao art. 186 do Código Civil de 2002)" (AC n.º 2004.005793-8, deste relator).
"Em se tratando de responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana (art. 159, CC/1916 e art. 186, CC/2002), para que seja reconhecido o direito à indenização, é necessária a efetiva demonstração do dano, do comportamento ilícito (dolo ou culpa) do agente e do nexo de causalidade entre ambos, ou seja, é imprescindível a comprovação de que o postulante da indenização sofreu prejuízo diretamente ocasionado pela conduta indevida da outra parte" (AC n.º 2005.039539-9, Desª Salete Silva Sommariva).
"Para caracterização da responsabilidade civil subjetiva devem coexistir o ato ilícito, o dano, o nexo causal e a culpa. À míngua de quaisquer desses requisitos legais, não medra a pretensão indenizatória" (AC n.º 2004.037562-4, Des. Luiz Carlos Freyesleben).
Destarte, não há que se falar em dano moral indenizável, na hipótese.
2. Quanto a alegada necessidade de ressarcimento pelos prejuízos materiais suportados, melhor sorte não socorre a autora. Primeiro, porque já consolidada nesta decisão a inexistência de conduta ilícita por parte da ré. Segundo, porque a declaração de fl. 90, que afirma que a autora se isentou do trabalho algumas vezes para cumprir os compromissos legais decorrentes das queixas-crimes ofertadas pela ré, dá conta de que a autora não teve sua verba salarial reduzida, mas apenas "deixou de ganhar bonificações e compensações de horários" pelos dias não trabalhados.
Deste modo, afasta-se, igualmente, a possibilidade de indenização por danos materiais.
3. Pelas razões acima expostas, vota-se no sentido de negar provimento ao recurso.
DECISÃO
Nos termos do voto do relator, à unanimidade, negaram provimento ao recurso.
O julgamento foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Fernando Carioni, com voto, e dele participou a Exma. Sra. Desª. Salete Silva Sommariva.
Florianópolis, 2 de outubro de 2007.
Marcus Tulio Sartorato
RELATOR
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